25.1.09
Leituras Ociosas
Como já tenho confessado noutras ocasiões, debato-me com o problema angustiante de possuir farta biblioteca, para a minha escala e posses, evidentemente, e escasso tempo para tirar proveito dos seus enormes benefícios.
Tenho-a repartida por vários locais e, com frequência, transporto livros de um para outro lado, consoante as prioridades do momento.
Isto tem inconvenientes óbvios. Quando penso que nem tão depressa vou precisar de ler este ou aquele livro, removo-o da minha proximidade. Passado pouco tempo, porém, logo me surge a necessidade de o consultar, por qualquer motivo prático inesperado ou por mera saudade da sua fruição.
Sofre esta dura pena, quem muito gosta de livros e os acumula desde a adolescência, aquela fase da absoluta voracidade de conhecimento, em que as preferências se multiplicam e se entrechocam, dificultando a fixação dos nossos interesses.
Hoje, o problema do discernimento dos interesses está em grande parte ultrapassado. Mas sobreveio outra aflição: a absoluta falta de tempo para ler e apreender tudo aquilo que estes numerosos nossos amigos, que são os livros, contêm.
Lá se acham depositados alguns verdadeiros tesouros, postos por gente muito diversa, que despendeu o seu precioso tempo para no-los oferecer e ali estão, generosa e pacientemente, à espera da nossa visita, em muitos casos obrigatoriamente demorada, e daí o problema do tempo, que só tem um sentido para nós.
A partir de certa faixa etária, começamos mesmo a sentir, com plena acuidade, a sua mais cruel característica, a da sua progressiva, inexorável exaustão, com tanta coisa ainda por descobrir, outras por rememorar, para de novo as fruir.
São estes, creio, sentimentos típicos de quem nasceu na era da cultura ainda principalmente exaurida nos livros.
Admito que hoje, na voragem da internet e do audiovisual, para as gerações mais moças, esta relação afectuosa com o livro tenha diminuído um tanto. Mas, igualmente creio, que sempre haverá quem leia por gosto, muito e variadamente, com inclinação algo omnívora, quanto a temas e autores, dando continuação a esta raça, para alguns exótica, dos que empregam grande parte do seu exíguo tempo, no longo comércio com os livros, como dizia Montaigne, insigne exemplo de leitor-escritor, binómio amiúde indissociável.
Pode a muitos espíritos, porventura mais práticos, parecer desperdício este modo de gastar o limitado tempo de cada um em leituras de puro ócio e gozo chão, sobretudo numa época que elegeu a busca de riqueza como principal, se não único objectivo de vida.
Mas asseguro que ele tem também as suas compensações e uma delas, não despicienda, é livrar-nos das ciladas desse maganão, como lhe chamava o nosso suave João de Deus, como também, muito antes dele, nos preveniu, aqui ao lado, o sábio Arcipreste de Hita, no seu famoso «Libro de Buen Amor» e outro seu compatriota, o esclarecido Quevedo, no conhecido poema «Poderoso Caballero», que a voz inspirada de Paco Ibanez ajudou a divulgar, há um ror de anos, noutra encarnação, quando todos estes males do dinheiro nos pareciam simples de sanar.
Para avivar a nossa memória, deixo aqui os três citados poemas que virão certamente muito a propósito, no momento actual :
O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.
E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
É só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.
Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
- Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus ( 1830 – 1896 )
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Tenho-a repartida por vários locais e, com frequência, transporto livros de um para outro lado, consoante as prioridades do momento.
Isto tem inconvenientes óbvios. Quando penso que nem tão depressa vou precisar de ler este ou aquele livro, removo-o da minha proximidade. Passado pouco tempo, porém, logo me surge a necessidade de o consultar, por qualquer motivo prático inesperado ou por mera saudade da sua fruição.
Sofre esta dura pena, quem muito gosta de livros e os acumula desde a adolescência, aquela fase da absoluta voracidade de conhecimento, em que as preferências se multiplicam e se entrechocam, dificultando a fixação dos nossos interesses.
Hoje, o problema do discernimento dos interesses está em grande parte ultrapassado. Mas sobreveio outra aflição: a absoluta falta de tempo para ler e apreender tudo aquilo que estes numerosos nossos amigos, que são os livros, contêm.
Lá se acham depositados alguns verdadeiros tesouros, postos por gente muito diversa, que despendeu o seu precioso tempo para no-los oferecer e ali estão, generosa e pacientemente, à espera da nossa visita, em muitos casos obrigatoriamente demorada, e daí o problema do tempo, que só tem um sentido para nós.
A partir de certa faixa etária, começamos mesmo a sentir, com plena acuidade, a sua mais cruel característica, a da sua progressiva, inexorável exaustão, com tanta coisa ainda por descobrir, outras por rememorar, para de novo as fruir.
São estes, creio, sentimentos típicos de quem nasceu na era da cultura ainda principalmente exaurida nos livros.
Admito que hoje, na voragem da internet e do audiovisual, para as gerações mais moças, esta relação afectuosa com o livro tenha diminuído um tanto. Mas, igualmente creio, que sempre haverá quem leia por gosto, muito e variadamente, com inclinação algo omnívora, quanto a temas e autores, dando continuação a esta raça, para alguns exótica, dos que empregam grande parte do seu exíguo tempo, no longo comércio com os livros, como dizia Montaigne, insigne exemplo de leitor-escritor, binómio amiúde indissociável.
Pode a muitos espíritos, porventura mais práticos, parecer desperdício este modo de gastar o limitado tempo de cada um em leituras de puro ócio e gozo chão, sobretudo numa época que elegeu a busca de riqueza como principal, se não único objectivo de vida.
Mas asseguro que ele tem também as suas compensações e uma delas, não despicienda, é livrar-nos das ciladas desse maganão, como lhe chamava o nosso suave João de Deus, como também, muito antes dele, nos preveniu, aqui ao lado, o sábio Arcipreste de Hita, no seu famoso «Libro de Buen Amor» e outro seu compatriota, o esclarecido Quevedo, no conhecido poema «Poderoso Caballero», que a voz inspirada de Paco Ibanez ajudou a divulgar, há um ror de anos, noutra encarnação, quando todos estes males do dinheiro nos pareciam simples de sanar.
Para avivar a nossa memória, deixo aqui os três citados poemas que virão certamente muito a propósito, no momento actual :
O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.
E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
É só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.
Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
- Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus ( 1830 – 1896 )
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Poderoso caballero es don Dinero
Madre, yo al oro me humillo,
él es mi amante y mi amado,
pues de puro enamorado
de continuo anda amarillo.
Que pues doblón o sencillo
hace todo cuanto quiero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Nace en las Indias honrado,
donde el mundo le acompaña;
viene a morir en España,
y es en Génova enterrado.
Y pues quien le trae al lado
es hermoso, aunque sea fiero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Es galán, y es como un oro:
tiene quebrado el color;
persona de gran valor,
tan cristiano como moro;
que pues da y quita el decoro
y quebranta cualquier fuero,
poderoso caballero
es don dinero.
Son sus padres principales,
y es de nobles descendiente,
porque en las venas de Oriente
todas las sangres son reales.
Y pues es quien hace iguales
al duque y al ganadero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Por importar en los tratos
y dar tan buenos consejos
en las casas de los viejos
gatos le guardan de gatos;
y, pues él rompe recatos
y ablanda al juez más severo,
poderoso caballero
es don dinero.
Nunca vi damas ingratas
a su gusto y afición,
que a las caras de un doblón
hacen sus caras baratas;
y pues hace las bravatas
desde una bolsa de cuero,
poderoso caballero
es don dinero.
Francisco de Quevedo (1580-1645)
Madre, yo al oro me humillo,
él es mi amante y mi amado,
pues de puro enamorado
de continuo anda amarillo.
Que pues doblón o sencillo
hace todo cuanto quiero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Nace en las Indias honrado,
donde el mundo le acompaña;
viene a morir en España,
y es en Génova enterrado.
Y pues quien le trae al lado
es hermoso, aunque sea fiero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Es galán, y es como un oro:
tiene quebrado el color;
persona de gran valor,
tan cristiano como moro;
que pues da y quita el decoro
y quebranta cualquier fuero,
poderoso caballero
es don dinero.
Son sus padres principales,
y es de nobles descendiente,
porque en las venas de Oriente
todas las sangres son reales.
Y pues es quien hace iguales
al duque y al ganadero,
poderoso caballero
es don Dinero.
Por importar en los tratos
y dar tan buenos consejos
en las casas de los viejos
gatos le guardan de gatos;
y, pues él rompe recatos
y ablanda al juez más severo,
poderoso caballero
es don dinero.
Nunca vi damas ingratas
a su gusto y afición,
que a las caras de un doblón
hacen sus caras baratas;
y pues hace las bravatas
desde una bolsa de cuero,
poderoso caballero
es don dinero.
Francisco de Quevedo (1580-1645)
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Lo que puede el dinero
Hace mucho el dinero, mucho se le ha de amar;
Al torpe hace discreto, hombre de respetar,
hace correr al cojo al mudo le hace hablar;
el que no tiene manos bien lo quiere tomar.
También al hombre necio y rudo labrador
dineros le convierten en hidalgo doctor;
Cuanto más rico es uno, más grande es su valor,
quien no tiene dinero no es de sí señor.
Y si tienes dinero tendrás consolación,
placeres y alegrías y del Papa ración,
comprarás Paraíso, ganarás la salvación:
donde hay mucho dinero hay mucha bendición.
El crea los priores, los obispos, los abades,
arzobispos, doctores, patriarcas, potestades
a los clérigos necios da muchas dignidades,
de verdad hace mentiras, de mentiras hace verdades.
El hace muchos clérigos y mucho ordenados,
muchos monjes y monjas, religiosos sagrados,
el dinero les da por bien examinados,
a los pobres les dicen que no son ilustrados.
Yo he visto a muchos curas en sus predicaciones,
despreciar el dinero, también sus tentaciones,
pero, al fin, por dinero otorgan los perdones,
absuelven los ayunos y ofrecen oraciones.
Dicen frailes y clérigos que aman a Dios servir,
más si huelen que el rico está para morir,
y oyen que su dinero empieza a retiñir,
por quién ha de cogerlo empiezan a reñir.
En resumen lo digo, entiéndelo mejor,
el dinero es del mundo el gran agitador,
hace señor al siervo y siervo hace al señor,
toda cosa del siglo se hace por su amor.
Arcipreste de Hita ( Sec. XIV)
AV_Lisboa, 24 de Janeiro de 2009
Comments:
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Peço desculpa por vir ocupar um espaço que é seu, com um assunto que não tem nada a ver com o teor do “post”, mas garanto que é por uma boa causa: a DEFESA DA CULTURA POPULAR. Permita-me que aqui publicite os VII JOGOS FLORAIS DE AVIS, cujo regulamento se encontra disponível em www.aca.com.sapo.pt e cujas dúvidas podem ser esclarecidas pelo 969015106.
Grato pela amabilidade, queira receber saudações culturais do
Fernando Máximo/Avis
Grato pela amabilidade, queira receber saudações culturais do
Fernando Máximo/Avis
Eu sou uma bibliofila (leva acento no o?) convicta. Portanto, percebo do assunto. Não há volta a dar. Ou há?
Quanto ao dinheiro...!
Saudações
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